Caio na vida da cena. Os ossos dos
braços articulam-se aos das pernas. Acabei de entender mais uma vez porque
escolhi isso. Chamo esta cena inicial de “Queda da Alice”. Não porque esteja me
apoiando no texto de Lewis Carrol, mas como uma metáfora da sensação da queda
da personagem em direção a um universo ficcional. Nesta queda metafórica,
convido um público imaginário a, aos poucos, ir caindo comigo. Apoio o olhar no
público, desconfio junto, abraço o outro com minhas dúvidas. Daqui para frente,
estaremos juntos.
O movimento intensifica-se até que meus
braços e pernas confundem-se e pausam. Minhas mãos deslizam sobre a minha face
e alcançam-me os joelhos. Impulsiono-me para fora do espaço que ocupava em
direção à boca de cena, já construindo o meu Gigante. Meu Gigante dança e
transforma-se em movimento, construindo uma diagonal, e deslizando nela,
observando a vida de seu alto ponto de vista.
Caio ao centro do palco, meu pé direito
arrasta-se à frente e a relação com a gravidade torna-se o único presente do
corpo. É minha dúvida atual. Meus ossos reorganizam-se para dar conta da graça
que vejo em admitir que entre meu corpo e o chão existem apenas intervalos. O
que pode um corpo ao direcionar-se ao chão e para fora dele? O que pode um
corpo que já se torna consequência da dúvida e da presença de um gigante?
E me faço imagem! Imagem de mim. Imagens
de chão. De nível médio e baixo. E deleito-me com as imagens. Abraço o chão e
saboreio-o. Visto-me de chão. Rolo no chão para a boca de cena, arrastando
comigo o processo da memória das Trigêmeas. Sento com as Trigêmeas no abismo do
palco. O abismo entre meu corpo e o do outro. O risco aqui é o de cair sobre
outro, tornar-me outro e sumir. Para onde eu iria? Para dentro de sua barriga?
Nasceria de novo?
Nasço trigêmea. Três. Cada qual com um
nariz bem parecido, mas diferente. Uma mão à direita, um joelho à esquerda e um
ombro para cima. Deslizo sobre as três e reaconteço-me. Adoro inventar
palavras. Entre os ombros das Trigêmeas, observo o olhar que me olha, de perto.
Salto sobre suas orelhas e permaneço em seu presente. Duro em seus olhares,
seus maxilares e dobradiças. Sou três, ou quatro, contando-me.
Vou deixando-as aos poucos, carregando
seus ombros nos meus e observando o espaço com meus atuais oito olhos. Eles me
fazem ocupar muito mais o espaço. Vejo muito, e sou muito vista. Fome de
espaço. Mão e chão.
Desejo um banco e ele acontece. Gostaria
de materializar pensamentos, mas este banco foi apenas empurrado da coxia.
Materializei-o com a ajuda de dois braços fortes que não são meus. Quantos
estou sendo?
Banco no meio do palco para sustentar
meu peso que quase já não sinto. Adoro também os paradoxos, especialmente os
que posso sentir. Ísquios na madeira. Lembro-me de Madalena. E de seu poodle
branco. Senta-se ao meu lado e me chama para aprender etiqueta! Não gosto de
etiqueta, mas adoro imitá-la. Ela é toda bela. Aquela beleza esquisita, de que
só eu gosto. E gosto de gostar da beleza dela, e de ela ser esquisita para os
outros. Gosto de gostar de coisas que só eu gosto. Gosto dela.
Desde a primeira vez que a vi, ela já me
convidou para imitá-la. Imitei-a. Imito-a e minha dança fica mais Madalena.
Assim como o nome que a dei. Ou foi o diretor?
Madalena convida meus cotovelos a
ficarem pontudos. A cutucar o espaço. Eu cumpro, ela muda, eu a sigo. Sigo
minha memória dela. Ela se movimenta muito. Acompanhá-la é sempre um risco.
Nela, vejo minha dúvida novamente. Vejo também meu sacro quase para dentro e
uma grande torção na coluna. Vejo meus pés buscando o chão e meus joelhos
querem beijar-se. Deixo e não deixo. O público poderia ficar constrangido.
Madalena é sexy. E melancólica. A melancolia pode ser sexy.
Madalena me deixa ir. Cumpri minha lição
e meu corpo agora é melancólico. E sexy. Queria fumar seu cigarro.
Por falar em boca, a Senhora com a
máscara sorri. Não consegui não admirá-la. Admiro-a há anos. Seu sorriso é como
um baile da terceira idade. Queria que minha avó tivesse se divertido tanto.
Queria ter dado uma máscara para minha avó. Seu nome era Clara. Daí vem meu
nome. Queria ter dado uma máscara à vó Clara. Ela teria sorrido. Dou agora, vó.
Toma.
Sorrio seus dentes. Eles tomam-me o
corpo. Toda ossatura torna-se dente. Uma arcada dentária muito grande. Gosto
muito de osso. Dente é osso. Gosto de morder osso. De gente. Não que o faça. Só
mordo o Igor. Nele é menos estranho e nojento. O Igor me sacia a vontade de
morder osso.
Deslizo agora sobre os metatarsos do
Menino do parque. Encontrei-o pelo caminho, ele sorriu, eu também. Convidei-o a
vir comigo e ele se jogou em minha boca. Eu o engoli.
Sobre o Menino, o que posso dizer é que
ele me dói. Dói em mim os pés e os cotovelos. Deve ser ciúme de sua meninice.
Arrasto-o pelo espaço sobre meus metatarsos e meus cotovelos aproveitam para
pensar por ele. Tenho a vida toda para fazer isso.
Quanto tempo aguentaríamos? Eu, meus
joelhos, os do menino e os seus?
Cansamo-nos todos.
O Igor me sacia! Gosto de sua presença!
Gosto de tocá-lo e de ser tocada por ele. O Igor é meu esqueleto de
brincadeira. Uma brincadeira muito séria. As brincadeiras, em geral, são bem
sérias. Pego no Igor e minha ossatura se sente. Sinto seu peso e atualizo-me.
Os ossos pesam.
Sinto meus ossos e espacializo-os. Outro
risquinho vermelho embaixo da palavra. Quero comê-la. Cuspi e ficou assim.
Espacializo a sensação de meus ossos.
Minha musculatura acompanha meu desejo. Preencho o espaço com meu corpo e levo
o Igor comigo, em muitos sentidos. Gosto de arrastá-lo como um cobertor de
neném.
Assim também desfaço-o um pouco.
Permito-me dançar. Peço licença para que fique comigo, para que não me esqueça
dele. Não me esqueça agora. Do agora. Junto com o Gigante, as Trigêmeas, o
Menino, a Madalena, a Senhora do sorriso e o Igor, estava eu. Sozinha.
Fui eu, como diz minha filha,
inocentemente. Era eu. Era eu com. Eu junto. Afinal, qual é o limite do corpo?
Não era outro. Sempre fui eu. Desde que
vi o Gigante, era eu vendo. Meu corpo querendo-o. Querendo brincar com ele, e
com o movimento que podia nascer com ele.
Meus ossos é que escutaram.
Meu presente é esse agora.
Ana Clara.